Ao abrir a caixa, ouve-se o clique da fechadura com código que pouco tempo funcionou. Depois, o roçar do lenço que protege o instrumento no corpo de madeira e, finalmente, as quintas em pizzicato. Mais ao menos afinado, sobrevivendo, vai-se andando diria ele se pudesse falar, mas ele fala de outra maneira, o violino respira... A violinista prepara primeiro o arco, aperta as cerdas frouxas, abandonadas e, com dois esticões, deixa-o pronto pro trabalho. Agarra depois o instrumento pelo pescoço, dá-lhe a volta e ajusta a almofada Kun, que os alemães nisto dizem que são os melhores. Num gesto rápido, apoia o instrumento no seu ombro e o violino toca-lhe a pele. Como velhos amantes, reprimidos de contacto durante muito tempo, deixam-se cair um sobre o outro, duvidosos os dois se serão capazes de amar-se ainda.
Soa um lá. 440 vezes vibra a velha corda, mais vezes ainda havia querido ela vibrar, pensa o violino, mas o violino não pensa assim. Com a cabeça cheia das indicações da japonesa que, na sua juventude, lhe ensinava a arte, a violinista ensaia um tosco exercício de Sevcik. Um muito simples, como uma primeira carícia, tímida e desajeitada, que pede licença para avançar. Há vida ainda, sonha o violino! Ela não sonha ainda, quando muito tenta respirar, convalescente, este contacto deixa-a atordoada, pergunta-se que faz ali, que existência tem ainda no corpo do outro. -Quem está aí? - parece ouvir-se o violino perguntar. Quem és tu que perguntas? - indaga a alma da violinista. E, numa luta de interrogações, respondem a tudo sem responder a nada, adentram-se na escuridão um do outro como no breu de uma capela abandonada e esperam a luz. Subitamente, Bach toma conta dos dois. Como quando o sol, sem avisar, invade os vitrais de cores fortes e nos parece receber um banho do Espírito Santo. Nas refinadas janelas dessa capela interna, começam a distinguir-se as cores antigas, as formas, os desenhos delicados... O violino chora agora, chora histórias tão antigas que presentes. E a violinista bebe sedenta as suas lágrimas. Como num mergulho baptismal, saem os dois renascidos. Separam-se. O violino descansa extasiado, nu ainda, no tecido aveludado da caixa aberta. Parece sorrir aquele sorriso de quem morre bem, para quem a morte é uma liberdade. Esgotada pelo esforço, a violinista suspira. Enrola no lenço o pequeno instrumento como a um bebé acabado de parir e repete na sua cabeça o número que marca a fechadura estragada: 787, 787...